Comunità Italiana
- A grande presença italiana no sul do país contribuiu
para que o MST surgisse nesta região?
João Pedro
Stédile - Certamente contribuiu, por dois motivos básicos:
primeiro porque entre os migrantes existe um apego muito grande para
o trabalho na terra, não abandonar o meio rural. E o segundo
foi a influência da igreja católica e da possibilidade
de muitos filhos de migrantes, como eu, poderem estudar. Então
essa influência ajudou a que os filhos de migrantes, hoje sem
terra, tivessem também alguma escolaridade.
Comunità
- Que organizações e ONGs italianas colaboram e são
parceiras do MST?
Stédile
- Na Itália nós temos ótimas relações
com algumas ONGs, como a Fratelli dei Uomi, com a Manitese, e sobretudo
muitos amigos nossos, de forma individual, têm organizado comitês
de apoio ao MST. Também temos recebido muito apoio de jornais
e revistas progressistas que divulgam nossa luta na Itália.
Comunità
- No começo do século, milhares de italianos vieram para
o Brasil em busca de terras, fugindo da miséria. A sua família
também passou por isso? Conte-nos um pouco a respeito da imigração
dos seus antepassados.
Stédile
- Como todos sabem, no final do século 19, o governo brasileiro
estimulou a migraçao de camponeses pobres da Europa para substituir
o trabalho escravo. Havia a lei de terras nº. 601, de 1850, que
praticamente proibia os ex-escravos, por tanto a população
negra, de ter acesso à terra. Então eles passaram a vender
terras para imigrantes. Os meus antepassados chegaram ao Brasil, pelo
que pude pesquisar e saber, em 1897, e receberam um lote de terras de
25 hectares, no então município de Antonio Prado, no Rio
Grande do Sul. Eles vieram de Terragnolo, na época ainda império
Austro-hungaro, pois essa localidade fica na fronteira com a Áustria
e hoje pertence ao Trento. Evidentemente que vieram para não
morrer de fome na Europa e enfrentaram toda a saga de sacrifícios
e dificuldades que todas as 600 mil famílias de imigrantes europeus
sofreram também depois aqui no Brasil.
Comunità
- Você estudou na Itália? Como sua formação
de economista foi influenciada por pensadores italianos como Gramsci
e outros?
Stédile
- Eu nunca estudei na Itália. Só estive na Itália
há dois anos, a convite de uma ONG e da prefeitura de Terragnolo,
que descobriu que eu era uma figura pública e então me
convidou a conhecer o povoado de onde saíram todos os Stedile.
E lá pude encontrar, cem anos depois, o que seriam meus primos
italianos. Muitos deles ainda são camponeses lá, em Terragnolo.
A possibilidade que tive de estudar, é pelo que me referi antes,
da influência da igreja católica e também do governo
popular do Leonel Brizola, que construiu muitas escolas no meio rural
gaúcho. Assim, pude estudar. Aí estudei com os capuchinhos
num internato, o Ginásio, e peguei o gosto pelo estudo. Fiz o
secundário ainda morando no interior. E com amor ao estudo migrei
para Porto Alegre, onde trabalhava de dia e de noite estudava na OPUC.
Daí entrei na Secretaria da Agricultura, pois era a minha vocação,
a agricultura, e mantive os vínculos com os trabalhadores rurais.
Trabalhei no sindicato dos trabalhadores rurais de Bento Gonçalves
para ajudar os agricultores (todos de origem italiana) a calcular o
custo da produção da uva, e lutar por um preço
melhor. Depois me envolvi com os sem-terra, e cá estou até
hoje.
Comunità
- Os Stedile que permaneceram na Itália estão ligados
à produção rural?
Stédile
- Quando estive em Terragnolo, os Stedile de lá me mostraram
a árvore genealógica. Eles têm desde muitos anos
atrás. O padre também me presenteou com atas da Paróquia
em que aparecem assembléias de camponeses realizadas, ainda em
1700 e poucos, aonde apareciam na lista, como sócios da paróquia,
famílias Stedile. E parte deles ainda se dedica à agricultura,
embora lá nas montanhas alpinas as condições sejam
bem piores do que aqui no Brasil, mas eles têm maçã,
uva, cultivam batatas, têm gado de leite...
Comunità
- Que valores da cultura italiana foram importantes na sua formação?
Você fala italiano ou algum dialeto? Preserva hábitos italianos
no dia a dia?
Stédile
- Uma das minhas avós é vêneta (Agustini). As mães
é que ensinam o idioma. Falo um dialeto vêneto. Lá
em Terragnolo eles falam outro dialeto, que meu avô falava, mas
a influência maior foi do vêneto. Da cultura italiana, sempre
tem os lados bons e ruins. Dos bons acho que é a vontade de trabalhar,
o espírito de sacrifício, o hábito de tomar vinho,
a música, as risadas espalhafatosas, a abertura para se misturar
com outras culturas. Entre os imigrantes do sul, pelo que conheço
os italianos, são os que mais se misturam. (Eu mesmo casei com
uma italiana e agora meus filhos têm também sangue idnio,
afro, árabe). O lado ruim, as bestemas, o individualismo, um
espírito de poupança doentio e o catolicismo meio hipócrita.
Comunità
- Qual a influência das experiências dos colonos italianos
como a colônia Cecília, fundada por imigrantes anarquistas
na luta pela terra no país?
Stédile
- Nenhuma, a maioria dos imigrantes e seus descendentes não teve
conhecimento dessa colônia. Os próprios colonos da Colônia
Cecília eram de origem urbana. Tinham uma elevada consciência
social, mas era uma minoria que não significava a média
dos imigrantes.
Comunità
- A Itália é famosa pelo cooperativismo entre os pequenos
e médios produtores que negociam em conjunto seus produtos. O
cooperativismo no MST vem alcançando resultados satisfatórios?
Stédile
- O cooperativismo no MST é nossa principal política para
organizar a produção nos assentamentos. Nossa política
é de estimular que haja mútua ajuda entre os agricultores.
Agora o nível de organização e de mútua
ajuda depende da consciência dos seus sócios e das condições
de capital. Por isso há muitas formas de cooperação.
E, entre elas, já temos em torno de 300 tipos de associativismo
e umas 80 cooperativas formadas nos assentamentos. Embora os resultados
sejam bem diferentes de uma experiência para outra, mas estamos
convencidos que é o único caminho de solução
para organizar a produção entre os camponeses pobres.
Não há outro caminho!
Comunità
- Para muitos foram as pequenas associações de produtores
que possibilitaram a recuperação econômica italiana
após a Segunda Guerra. Este modelo é viável para
a agricultura brasileira onde há grande concentração
de terras e de renda?
Stédile
- A recuperação econômica da Itália, pelo
que estudei e li, se deveu ao espírito de trabalho, e ao fato
de não serem explorados por ninguém. A Itália nunca
teve que mandar dinheiro para fora, como nós do Brasil estamos
fazendo desde 1500. Nós somos exportadores de riquezas. Até
para Veneza. E também porque lá se construiu uma sociedade
mais democrática e mais descentralizada. Há mais distribuição
de riqueza e de renda. O dia que houver no Brasil uma política
de distribuição de riqueza e de renda, esse país
será muito superior inclusive do que Itália, em termos
econômicos. Por isso lutamos tanto, pela reforma agrária,
pois é a principal forma de distribuir a riqueza da terra. E
por isso todos os países que hoje são ricos, do hemisfério
norte, fizeram a reforma agrária.
Comunità
- Com vinte anos completos, quais foram as conquistas e quais são
os próximos desafios do MST? O governo realmente deu mais espaço
para o MST como ele diz?
Stédile
- São ainda muitos desafios e muitas conquistas. Difícil
de resumir em poucas linhas. Nós estamos enfrentando um modelo
econômico excludente, que só produz cada vez mais pobres.
Temos um governo mentiroso e totalmente subordinado aos interesses do
capital internacional. Nosso maior desafio é juntar forças
com outros movimentos sociais do campo e da cidade para mudar o modelo
econômico. E um dia fazer uma grande reforma agrária, que
vai manter a riqueza no meio rural, vai fixar o homem no campo e estancar
o êxodo rural. E construirmos uma sociedade onde cada um e todos
os brasileiros juntos possam ter terra para trabalhar, casa digna para
morar, trabalho o ano inteiro, comida na mesa e escola para os filhos.
Parece tão pouco, mas nem isso as elites brasileiras aceitam
repartir com a população brasileira, e por isso 59%, segundo
a FGV continuam em condições de pobreza e de miséria.
Mas um dia vai mudar...
Comunità
- Como você define o panorama político no Brasil e quais
as suas perspectivas para as eleições de 2002?
Stédile
- O maior deságio do Brasil, como disse antes, é organizarmos
um grande debate na sociedade brasileira para discutir um novo modelo
econômico para o país. Um modelo que recupere a soberania
nacional, que impeça o envio de recursos para o exterior, que
controle os bancos, que são a principal forma de explorar a população,
e que garanta a todos os brasileiros direitos e oportunidades iguais.
E isso não se faz apenas com eleições, como já
dizia Simon Bolivar, em 1821, o povo latino não se alimenta de
cédulas de votação. Nós precisamos de um
movimento social, de conscientização e de luta por mudanças
sociais.
Comunità -
Recentemente você declarou que a vitória de Lula não
significaria o fim das reivindicações do MST. Como ficaria
a relação do MST em um governo de esquerda? O que o MST
tem a propor para a esquerda no governo?
Stédile
- Ao contrário. Se houver um governo de esquerda, popular, que
esperamos, as reivindicações do povo e dos camponeses
irão aumentar. Aí é que vão se manifestar
com mais força, por que a correlação de forças
será diferente e o povo se sentirá motivado a se organizar
e a lutar por seus direitos, há tantos anos negados. Nós,
num governo Lula ou de outros de esquerda, seguiremos com mais ânimo
a organizar os pobres, para que lutem por seus direitos. As mudanças
sociais na história da humanidade, na Itália, na China
e aqui no Brasil, somente aconteceram quando houve mobilização
do povo. Por isso essa deve ser nossa preocupação permanente,
independente dos governos.
Comunità
- Que análise pode ser feita da vitória de Berlusconi
na Itália, país com um histórico socialista?
Stédile
- Minha modesta opinião, pelo que acompanho de longe, foi o resultado
de dois fatores: por um lado a decepção da população
italiana com os setores de esquerda, que traíram os princípios
e os valores socialistas e que, quando estavam no governo, aplicaram
também receituários neoliberais. No fundo, a população
não viu muita diferença entre D'Alema (ex-primeiro ministro
da coligação de esquerda) e outros. E o segundo fator,
a existência de uma classe dominante italiana conservadora, endinheirada,
racista, que quer manter seus previlégios a qualquer custo. Mas
parece que, no geral, a maioria da população na verdade
está decepcionada com os partidos políticos e com a política
institucional. E, certamente, no futuro haverá outros movimentos
sociais e políticos que impulsionarão novas mudanças...
Assim é a historia da dialética. Assim, como agora estão
acontecendo tantas mobilizações em Genova, embora os partidos
estejam um pouco ausentes, pelos maiores.