Os traços da sociedade

Don Ciccio, como é carinhosamente chamado pelo amigo Lan, é, sem sombra de dúvidas, o traço mais respeitado do Brasil. Isso porque, diariamente, há quase 20 anos, ele vem satirizando as situações mais relevantes deste país através de suas caricaturas na primeira página de O Globo, único dos grandes jornais que continua dando espaço nobre às charges. Segundo a velha máxima, mais vale uma boa imagem à mil palavras, e, neste caso, a imagem é criada com muita qualidade humorística.

Humor que passou do papel para o disco na mais nova empreitada do Conjunto Nacional, dos irmãos Paulo e Chico Caruso, o recém lançado CD E La Nave Và, doppo Fellini. Que reúne pérolas da história contempoânea com muita graça como em A Nau de Cabral, Lalau, Procura, Procurador, Procura, Droga Nova República, 500 Anos de Corrupção, Brasil, País do Futuro. Entre outras interpretadas ao lado de Luiz Fernando Veríssimo e Aroeira no saxofone e Redi na percussão.

Chico Caruso, como ironicamente gosta de contar, nasceu no "1º Comando da Capital", no bairro do Carandirú, em São Paulo. Diz ser descendente de sicilianos, mas, por causa de brigas familiares, não conviveu muito com a parte italiana da família, a paterna. Mas acabou tendo uma criação all'italiana por causa de seu avô materno, espanhol que convivia com operários italianos, na Mooca e no Brás.

Começou a trabalhar em 1967 num jornal - diz ele - mezzo popolare, mezzo esquerdista, a Folha da Tarde, de São Paulo. Lá, de 4h 30m às 7h de cada dia, deveria concluir uma charge política, desenhos para o horóscopo, ilustração para uma coluna e três desenhos para o esporte. Depois corria para as aulas no colégio estadual de Vila Madalena. Em dezembro de 1968 veio o AI-5 e logo acabaram com a charge do jornal, reduzindo seu trabalho a ilustrações. Ingressou no curso de Arquitetura da USP e de lá foi convidado a participar da revista de quadrinhos Balão, junto de Laerte, da Gazeta Mercantil. Então tentou trabalhar num escritório de arquitetura, onde ficou por três dias, e viu que a sua era mesmo desenho a mão livre, indo para o Opinião e para o Movimento. Naquela época dramática em que Millôr, Jaguar, Ziraldo e Henfil já brilhavam no Pasquim, Chico Caruso teve contato com os artistas Luís Trimano, Elifas Andreatto e Cássio Loredano. Nos desenhos nada de legendas ou balões, tudo deveria ser caprichosamente subentendido. Foi convidado por Hélio de Almeida para trabalhar na IstoÉ, após ter ganho o "Salão de Humor de Piracicaba", em 1976.

Foi quando a IstoÉ publicou um especial com caricaturas do Figueiredo que os traços do jovem artista chamaram a atenção do italiano Lan. Em setembro de 1978, Lan pede para Chico cobrir as férias de Ziraldo no Jornal do Brasil. Em 1982 foi contratado pelo O Globo, de onde não o deixaram mais escapulir.

Nesta conversa, a qual convidamos o caricaturista e descobridor de talentos Lan, que já foi capa de Comunità e hoje é um de nossos colaboradores, Chico Caruso nos fala descontraidamente de sua arte. Alías, curiosamente, arte de muitos italianos e oriundi no Brasil. Num apart hotel, no morro do Vidigal, onde os dois dividem um ateliê com uma vista de dar inveja, realizamos esse bate-papo informal entre alguns goles de cerveja e boas risadas, muitas risadas.

Lan - Eu me orgulho de ter trazido o Chico para o Rio. Daqui ele explodiu para o país inteiro, pois até hoje acredito que em São Paulo se ganha dinheiro, mas o Rio de Janeiro continua sendo a capital cultural do país. No JB ele começou a aparecer como a maior revelação dos últimos 30 anos na caricatura.

Chico Caruso - Me lembro que quando cheguei fiquei hospedado no recém-inaugurado hotel Savoia Hoton, em Copacana. E logo conheci minha mulher, a Eliane.

Comunità - Sua família é siciliana?

Caruso - Eu imagino que sim. Na verdade não sei. O avô do meu pai é que era italiano. Meu pai era filho único e eles não se conheceram. A mãe de papai era portuguesa, Isaura Bernardo, e ela, burguesa, brigou com a família toda, levando meu pai a se isolar dos Caruso. Aí eu só encontrei com eles mais tarde, quando meus pais se separaram. Carusino é usado de maneira carinhosa para dizer bambino. Meu avô, pai da minha mãe, que era espanhol, trabalhava na fábrica de sapatos do pai. Lá ele convivia com os operários italianos da Moca e do Brás e falava vários dialetos, inclusive o vêneto. Tudo o que sei de italiano aprendi com ele. As colônias italiana e espanhola eram muito grandes e tinham uma certa proximidade. Me lembro que meu avô um dia foi almoçar na casa de um italiano operário e um amigo dele falou: "ah, ele é espanhol! Espanhol... coitado". (risos)

Comunita - Como surgiu a idéia do Conjunto Nacional e do CD "La Nave Và, doppo Fellini"?

Caruso - Surgiu em 85 no Salão de Humor de Piracicaba. Eu e meu irmão Paulo fazíamos parte do júri e descobrimos que ali existiam vários desenhistas que tocavam alguns instrumentos. Daí surgimos inicialmente como Muda Brasil Tancredo Jazz Band, na época da morte do Tancredo. Faziam parte o Veríssimo no sax, Claudio Paiva na bateria, Reinaldo no contra-baixo, Miguel Paiva e José Rodrigues cantavam, o Grasset e o Alexandre Machado no sax... Há cerca de dez anos, eu e Paulo havíamos feito a música "La Nave Và", só que era considerada anti-carioca e aí o tempo passou e ficou perfeita.

Comunità - Nas suas charges você utiliza computador?

Caruso - Computador é uma ferramental ideal para desenhistas. Quem utiliza muito é o Aroeira, mas eu ainda não domino a técnica.

Comunità - E a arte italiana?

Caruso - A arte e a comida são italianas, o resto é variação. (risos) A própria caricatura começa com os italianos irmãos Carracci. Depois o Leonardo Da Vinci...

Lan - A caricatura é a arte de destacar o grotesco e o ridículo das pessoas.

Comunità - E a imprensa evoluiu?

Caruso - Os jornais evoluiram tanto tecnicamente como politicamente. Até hoje eu não acredito que estou no Globo, pois ele melhorou muito. A independência é fundamental para a vendagem.

Lan - Quando eu trabalhei no Globo em 55 a pressão era terrível. Por isso lamentei muito quando o Chico saiu do JB, mas ele conquistou um espaço fantástico lá. Hoje em dia não se admite nos grandes jornais, grandes chargistas, só conheço o Chico e o Paulo.

Caruso - Qualquer dia vai entrar um editor Punk e eu vou ser demitido.

Comunità - Alguma vez você se viu obrigado a mudar sua charge.

Caruso - No episódio do ônibus 174. Não consegui ver a imagem que passou na TV e aí bolei mil idéias, mas quando chegou na hora do fechamento soube que a menina havia morrido e aí não deu para publicar a charge. Aí fiz um textinho: Me desculpe, mas pela primeira vez em 32 anos de carreira não consegui juntar com humor os fatos do dia. Isso teve uma repercussão enorme. Aliás, as duas melhores charges que fiz no ano passado não eram desenhadas, eram escritas. A outra foi o convite da Polícia Federal: do ministro da Justiça ao Exmo. Sr. Juiz Nicolau para se apresentar em qualquer delegacia, a hora que quiser, traje passeio restrito. Por ironia, no dia seguinte ele se entregou. Ou seja, a charge não é o desenho. O desenho é a maneira reduzida de você mostrar uma idéia, que é o principal.

Comunità - E qual o melhor tema da atualidade?

Caruso - É sempre o que está em evidência. Agora é a crise dos presídios, mas também tem o ministro, o presidente, o ACM, o Jader Barbalho, sempre tem algo no foco de tensão nacional.

Comunità - Qual é o futuro da caricatura?

Caruso - O futuro da charge será a animação. Não sei se através da Internet ou do próprio papel do jornal, o que seria ideal.

Comunità - O que lhe vem a mente quando se fala de Itália?

Caruso - Paulo Conti. Ele é um advogado que tem uma banda sensacional. Meu filho Fernando foi a Itália e me trouxe três CDs ótimos dele. O Lan ouviu e também gostou. Ele parece com o Angeli, tem um narigão comprido. Suas músicas são engraçadíssimas.

Comunità - O Lan diz que você é o melhor caricaturista do Brasil.

Caruso - Bondade. Poderia me considerar um Romário, que com todas as limitações consegue ser um jogador sensacional, mas não sou.

Lan - O que é melhor é que ele descobriu a vocação de ser carioca.

Comunità - E tem espaço para novos artistas?

Caruso - Cada vez mais.