Aos
71 anos, Lan é considerado um dos maiores chargistas do mundo
e escolheu o Rio para ganhar inspiração
Lanfranco Aldo Ricardo
Vaselli Cortellini Rossi Rossini, tudo isso resumido em apenas três
letras: Lan. Esse italiano nascido no ano de 1925 em Monte Varchi,
próximo a Florença, é o mais fiel retratista
dos costumes cariocas. Através de suas mãos surgem as
situações mais respeitadas pelo povo do Rio e pelos
brasileiros em geral: o futebol, o samba e a mulata.
Sua primeira caricatura
profissional foi publicada em 1945 na revista Mundo Uruguaio, logo
depois, acabou sendo contratado pelo jornal El País, de Montevidéu,
onde criou fama através de charges de jogadores de futebol.
Em 1952, procurando capas para a revista argentina El Hagar no Rio
de Janeiro, Lan acaba sendo entrevistado pelo Última Hora.
Samuel Wainer, proprietário, logo que viu um dos trabalhos
do artista - uma caricatura do jogador Baltazar, o cabecinha de ouro
do Corínthians, ídolo nacional - não resistiu
chamá-lo para fazer parte da equipe do jornal e o chargista
não teve dúvidas em aceitar. No jornal Última
Hora, Lan fez a única caricatura que marcou um político
para o resto da vida: O Corvo, personalizando Carlos Lacerda.
Também exerceu
o jornalismo no semanário Flan, ao lado de Otto Lara Rezende,
Vinícius de Moraes, Hélio Pellegrino e João Cabral
de Melo Neto. Antes de ir para o Jornal do Brasil, em 1962, o desenhista
trabalhou no jornal O Globo e no Estado de São Paulo. Sobre
as charges políticas Lan afirma: "Estava me tornando um
velho chato de tanto desenhar políticos, prefiro pintar minhas
mulheres", declarou.
As misturas de nacionalidades
fizeram de Lan um típico e bom malandro nos tempos da boêmia.
Das rodas de intelectuais e companheiros que se reuniam às
seis da tarde no bar Villarino, no centro da cidade, Lan guarda grande
saudade. "O Rio de hoje continua lindo, mas é difícil
enfrentar o dia-a-dia do carioca. O Rio antigo era uma cidade confortável,
podia-se voltar às seis da manhã para casa sem correr
nenhum risco, hoje, parece uma verdadeira prisão domiciliar.
Esta é a maior incoerência que existe, pois é
uma cidade que te abraça e te convida", queixa-se.
No ano passado, Lan
recebeu várias homenagens marcando seus 70 anos de idade e
50 de pranchetas. Da Portela, ganhou uma ala com bonecos representando
seus desenhos. O bloco carnavalesco Simpatia é Quase Amor desfilou
pelas ruas de Ipanema com camisetas assinadas pelo artista e cantando
parabéns para você. Várias exposições
e outras homenagens foram realizadas ao longo do ano. O último
reconhecimento prestado ao chargista foi neste mês de setembro
em Teresina, no Piauí, onde estavam reunidos o governador do
estado, o prefeito, amigos e muitos artistas, num dos mais importantes
espaços culturais do país.
Nesta entrevista, descontraído
e bem humorado, Lan conta ao COMUNITÀ um pouco mais da sua
carreira e da vinda da sua família para o Brasil, faz suas
observações sobre o futebol e caracteriza sua paixão
pela América Latina, critica a política e declara ser
o que ele chama de anarquista light, define o italiano e, acima de
tudo, declara ser um apaixonado pela sua terra natal. Mas nem por
isso, deixa passar em vão o "descaso dos diplomatas italianos".
Comunità
Italiana - Como você veio parar no Brasil?
Lan - Meu pai
veio para o Brasil contratado pela Sinfônica do Municipal de
São Paulo, depois foi contratado pela Sinfônica de Montevidéu
e ficamos sempre devido os contratos de meu pai, que era um excelente
músico e gravou discos, inclusive, com Toscanini. Mas a minha
formação é estritamente italiana com uma adaptação
ao clima maravilhoso desta América Latina que adoro, como todo
italiano, que radicado passa a se apaixonar pela terra onde está,
é nossa característica.
Comunità
italiana - Por que o Rio de Janeiro?
Lan - Primeiramente,
temos que considerar que este é um país tropical, é
uma cidade tropical, de cores vivas, de astral para cima. O calor
e as praias, a beleza das mulheres, tudo isso, para nós italianos
é uma mistura fundamental. Faz parte desta explosão
de temperamento que nós temos, tanto na ira como na alegria.
Nós somos explosivos: não temos estopim, temos espoleta,
explodimos de amor, de alegria ou de raiva. Mas eu sinto muita saudade
do Rio de quando eu conheci, em 1952 aquela era a verdadeira cidade
maravilhosa.
Comunità
Italiana - Por que a escolha da mulata como símbolo do
seu trabalho?
Lan - A mulata
é o tipo de mulher que mais se adapta ao meu estilo, que é
cheio de curvas. O corpo da mulata é toda curva, é ritmo.
Eu gosto das mulheres em geral: ruivas, morenas, crioulas, mulatas.
Mas, sem dúvida, a mulata é um modelo ideal, ela reflete
o Rio e me ajuda barbaridade por causa da cor.
Comunità
Italiana - Como você avalia esses 51 anos de profissão?
Lan - Se voltasse
atrás, voltaria a ser jornalista, voltaria a fazer tudo que
fiz, certo ou errado. Não tenho arrependimento nenhum, isso
é uma grande felicidade... ser livre para agir e, sobretudo,
esse espírito libertário que sempre tive e é
uma espécie de ser anarquista light. Mas não esse Anarquismo
mal interpretado que é associado à baderna e à
falta de respeito.
Comunità
Italiana - Mas, e como jornalista...
Lan - Graças
a Deus, eu sempre fui requisitado pelos maiores jornais de onde estive.
Começei no jornal El País, de Montevidéu, depois
fui para a grande imprensa argentina, onde trabalhei em várias
publicações e, em 1952, de passagem pelo Rio, fui chamado
pelo Última Hora e não pensei duas vezes em aceitar,
pois já estava gostando muito do Rio. Mas, tenho trabalhos
publicados em várias partes do mundo e já fui considerado,
na Inglaterra, dentre 57 artistas, um dos cinco melhores. E, apesar
disso, o italianinho aqui, nunca foi lembrado pela Embaixada ou pelo
Consulado italiano.
Comunità
Italiana - Isso seria mágoa?
Lan - Sim, pois
eu tenho muito orgulho de ser italiano. Em todas as entrevistas eu
faço questão de ressaltar o meu país de origem.
Já fiz exposições na Espanha, França,
Suiça, Inglaterra, Alemanha, mas da Itália nunca recebí
sequer um convite. Esse é um dos motivos pelo qual eu não
gosto dos diplomatas: eles não querem nem saber o que está
acontecendo com os seus compatriotas. Quantos dos velhos imigrantes
receberam algum tipo de reconhecimento do Consulado ou da Embaixada
italiana?
Comunità
Italiana - Você acha que o humor marca a sua personalidade?
Lan - Nessa
profissão você tem que nascer com o jeitinho, você
não improvisa. É ver o mundo sempre de uma maneira melhor
e tentar desdramatizá-lo. Deixar o leitor brincar com a verdade.
Eu costumo dizer que a charge é uma paulada, porque ela mexe
com o ridículo das pessoas. Se você quer destruir uma
pessoa ridicularize-a ao extremo, como fez Chaplin com Hitler e Mussolini.
A charge é pior do que um editorial de fundo de um jornal.
Comunità
Italiana - Mas você parou de fazer charges políticas
e atualmente não parece ridicularizar, ao contrário,
usa formas graciosas.
Lan - Eu discordo
da definição que os dicionários dão à
caricatura - arte de destacar o ridículo das pessoas. Este
é um conceito arcaico, um conceito renascentista que já
foi superado desde o século passado, onde a caricatura passou
a ter uma importância muito maior se aprofundando na personalidade.
A mim não interessa o narigão das pessoas, me interessa
é a personalidade. O narigão seria utilizado para provocar
um certo trauma num administrador, por exemplo. Mas como eu poderia
fazer uma caricatura da Sophia Loren feia, ridícula?
Comunità
Italiana - Uma charge diz mais do que mil palavras?
Lan - A minha
vida toda foi dedicada à caricatura e nem sequer eu parti para
o mercado de artes plásticas. A caricatura, até como
arte figurativa, é a única destinada a perdurar enquanto
existir um ser-humano na Terra. Eu diria que 100% dos leitores observam
uma charge publicada na página editorial ou na primeira página
de um jornal, e muitos deles não lêem o próprio
editorial.
Comunità
Italiana - Você trabalha há 33 anos num dos maiores
jornais do país. Como você define o JB?
Lan - Eu já
recebi várias propostas de outros jornais e revistas, mas fico
no JB por uma razão: por ser, apesar de todas as crises que
já enfrentou, o de maior credibilidade neste país. Além
disso, é um jornal que abrange o país inteiro e é,
também, o jornal mais levado a sério em Brasília,
a exemplo do Le Monde, na França. A matéria prima do
JB é a opinião, a opinião feita com muita coerência;
isso tem a ver com minhas idéias. Eu, a imprensa devo tudo.
Adoro ser jornalista e as vezes sinto até saudade do cheiro
da redação, dos tic-tacs das máquinas, que foram
substituídas pelos computadores e aí veio um silêncio
absoluto.
Comunità
Italiana - Como você observa a entrada do computador na
composição das charges?
Lan - Eu não
discuto a utilidade do computador numa redação de jornal,
é fundamental. Sou contra as chages feitas nele, porque a personalidade
do artista some. No computador você deforma uma fotografia e
pronto. Isso nivela todos os desenhistas. Hoje você confunde
o Ique com o Chico Caruso e artistas menores, porque esses são
grandes.
Comunità
Italiana - Mas, vamos falar de futebol. Por que o flamengo?
Lan - Agora
você tocou num ponto importante: por que torço para o
futebol latino-americano? É evidente que uma parte do meu coração
é ainda da Azzurra. Quando dança o Brasil, dança
a Argentina, dança o Uruguai, aí sou Azzurra. Isso porque
a Itália modificou o futebol. No campeonato italiano você
não torce para um time, torce para estrelas que recebem muita
grana. A Itália foi a pioneira em investir milhões em
atletas do mundo todo. No Brasil, na Argentina e no Uruguai, nascem
mais craques em um mês do que em cinco anos na Europa. Hoje,
é o espetáculo que interessa, os grandes astros em campo.
Agora Ronaldinho ganha 40 milhões no Barcelona, amanhã
vai jogar, ou ganhar, em outro clube. Eu, que sou da época
do Zico, que fez sua carreira no Flamengo e é doente como eu
por esse time; da época do Pelé, que fez a sua carreira
no Santos; do Garrincha e do Nilton Santos, que fizeram carreira no
Botafogo, não gosto de ver times misturados e, todo esse critério,
foi imposto pelo capital. Mas, hoje, a Itália sofre as conseqüências,
como na disputa do Tetra, que poderia ter sido dela. Na Copa, o técnico
italiano foi obrigado a colocar dois jogadores machucados, Baggio
e Barese, isso porque a Itália mal consegue juntar 11 titulares,
enquanto o Brasil coloca 22 craques. Isso acontece porque os times
estão cheios de estrangeiros.
Comunità
Italiana - O que mais marcou seus 70 anos?
Lan - É
difícil... mas, no ano passado, quando eu completei 50 anos
de prancheta e 70 de idade, tive uma emoção muito gostosa.
Um bloco carnavalesco em Ipanema, chamado Simpatia é Quase
Amor, me prestou uma homenagem emocionante: mais de cinco mil pessoas,
na praça, cantando parabéns para você. Confesso
que chorei...
Comunità
Italiana - E o desfile no próximo carnaval, da Vizinha
Faladeira?!
Lan - Agora,
vou até ser enredo da Vizinha Faladeira, que é uma das
mais tradicionais escolas do Rio. Enfim, eu tenho recebido tanto carinho.
A Câmara Municipal me deu o título de "Cidadão
Carioca"; o Globo, que é rival do JB, também me
deu a cidadania carioca; Petrópolis me deu a cidadania petropolitana,
é bom saber que a sua vida não passou em vão.
E, em todos os lugares, boto o meu orgulho de ser italiano na frente
e tento honrar o meu país, porque, acima de tudo, sou toscano,
sou de uma terra de artistas, entre Arezzo e Firenze; quero continuar
a tradição.