Edição do mês de março de 2000

 

Uma "dolce vita"

O Talentoso Ripley tem como cenário a Itália do pós-guerra, entre 1958 e 1959. Um momento de grande transformação. A Itália da época ainda existe sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial. A Roma atual reside sobre a Roma antiga. Minghella e seus colaboradores pesquisaram o período minuciosamente. Os detalhes são de uma verossimilhança extraordinária. A atenção dedicada a detalhes por Minghella intensifica o aspecto romântico do filme, iluminando o drama.

Segundo o diretor, parte de sua compreensão de como era a Itália na época vem do cinema italiano no fim dos anos 50 com Fellini, Visconti, Rosselini. "Imagens que na minha mente constituíram o filme vêm da Dolce Vita e Boas Vindas."

A equipe iniciou os trabalhos em Roma, em agosto, no topo do Monte Capitólio. Na Piazza di Spagna, Minghella filmou uma sequência no Caffè Dinelli. Depois, filmou dentro do elegante Palazzo Taverna de 1300, onde uma entrada imponente e uma escadaria grandiosa funcionaram como o interior do palácio de Ripley na Piazza Gioia.

A Piazza di Spagna foi maquilada. Algumas lojas tiveram que ser cobertas com novas entradas, construídas para estar de acordo com a época e paredes foram cobertas com cartazes e propagandas antigas. O disfarce funcionou. Por todo o dia, turistas aguardavam em fila a abertura da agência da American Express, criada pela produção para cobrir uma farmácia.

Próxima parada: Nápoles. Em Nápoles, Minghella filmou do teatro San Carlo e também a cena de abertura do filme, quando Ripley chega à cidade. Em setembro, a equipe foi para a ilha de Ischia para filmar as cenas que se passam em Mongibello, nome da cidade onde vive Dickie e Marge, e também uma alusão ao apelido do Monte Etna. Uma figura de um lugar que é bonito por fora, mas que é desordenado e caótico por dentro.

De Ischia a equipe partiu para Anzio e Porto Ercole, na Toscana e depois San Remo. Em Veneza, permaneceram dez dias, rodando cenas belíssima no Grande Canal e na Piazza San Marco.

O custo de produção do filme foi de U$ 30 milhões, cinco a menos eu o Paciente Inglês. A fotografia, o figurino e a música fazem de O Talentoso Ripley o que queria Minghella, um tributo à magia com que a Itália seduz a todos nós.

Diretor fala ao Comunità

Inglês de nascimento, italiano de coração, Anthony Minghella, 46, é hoje um dos mais bem quistos diretores na indústria cinematográfica. A paixão se justifica. Na bagagem, Minghella tem apenas três filmes, porém nove Oscar, todos conquistados com o terceiro deles, "O Paciente Inglês" (1996), do qual é, também, roteirista.

Minghella tem os atributos que agradam ao mercado do cinema. É ao mesmo tempo músico, escritor e roteirista. Fez sua estréia em 1991 com o filme "Truly Madly, Deeply" (Um Romance do Outro Mundo, na versão brasileira), premiado na Inglaterra e na Austrália. Já tinha, porém, prêmios literários no seu curriculum como dramaturgo e em 1984 foi eleito o mais promissor autor de teatro pelos críticos do Teatro de Londres.

Dos pais italianos, proprietários de uma fábrica de sorvetes, Minghella herdou o amor pelo país, refletido no seu recente filme, "O Talentoso Ripley", adaptado por ele próprio do romance de Patrícia Highsmith. O filme conta a história de um homem que, encantado com o estilo de vida de outro, não se detém diante de nada, nem mesmo do crime, para realizar o sonho de se transformar em outra pessoa.

Em "O Talentoso Ripley", o diretor e roteirista mostra a Itália na qual diz sentir-se em casa, a Itália do cinema por cujo encantamento garante ser completamente dominado. O filme recebeu cinco indicações para o Globo de Ouro e foi apontado entre os dez melhores do ano por importantes listas de críticos nos Estados Unidos.

Depois da pré-estréia do filme, com lançamento nacional em 18 de fevereiro, Minghella falou à imprensa numa das salas envidraçadas do Copacabana Palace, no Rio. Diante da paisagem e do dia de verão, desabafou, bem humorado, sobre o tormento de estar no Rio de Janeiro somente cinco dias defronte à praia, sem poder tomar sol. Ao contrário de Ripley, o talentoso Mr. Minghella não parece seduzido pelas armadilhas do sucesso e conserva a simplicidade de quem está satisfeito com o lugar que conquistou.

"Que Itália é essa que estou filmando?"

Comunità - Seus filmes frequentemente falam de pessoas excluídas. "O Paciente Inglês" falava de um expatriado, Ripley fala de um excluído. Esse tema é uma obstinação no seu trabalho?

Minghella - A posição do escritor é sempre a de alguém que está de fora. Acho que é por isso que Ripley tem agradado tanto aos escritores. A posição de Ripley é de observador. Mas acho perigoso especular que coisa me atrai numa história porque quando analisamos assim é a nossa mente que funciona, e não o coração.

Comunità - Seu filme recorda a atmosfera daquele do Win Wenders. Esses cineastas exerceram alguma influência no seu trabalho?

Minghella: Conscientemente não. Eu adoro o American Friends. Na verdade todos esses filmes são variações do mesmo tema. A pessoas dizem: "seu filme lembra Hitchcock". Quando fiz o Paciente Inglês diziam: "seu filme me lembra o David Lynch". Mas eu gosto de pensar que tenha uma voz própria.

Eu amo tanto a Itália que diria que este filme é, na verdade, um caso de amor. Enquanto eu filmava, pensava: Que Itália é essa que estou filmando? É a Itália onde tenho estado? É a Itália dos pais, o que significa a minha família para mim? É a Itália que vejo diante de mim? O que o cineasta faz quando pega a câmera e começa a filmar? Não tenho certeza sobre qual é a minha referência, então acho que a ficção é exatamente um reservatório da imaginação. São as coisas que escutamos, vimos, as histórias que nos contaram. É isso que gosto de fazer como contador de histórias.

Comunità - O Talentoso Ripley é a história de um homem que assassina pessoas e não é condenado. Como o você vê o tema de moralidade nessa história?

Minghella - É interessante, porque muitos jornalistas e o público nos EUA acharam o filme imoral. Para mim o filme é dolorosamente moral. O filme mostra que o custo de desistir de si mesmo é assassinar a possibilidade de ser amado. O meu prazer em ler o livro foi justamente a falta de moralidade. Mas o cinema temos uma outra responsabilidade. Quando a pessoa está lendo um livro, está no controle da experiência, pode escolher o seu "metabolismo" de leitura. Mas no cinema a experiência fica sob o controle do cineasta. As cenas temas aparecem na tela e o público não pode determinar a sua intensidade. Além disso, tudo acontece em meio a muitas outras pessoas, o que faz crescer essa intensidade.

Comunità - Foi por isso que decidiu humanizar o Tom Ripley?

Minghella: Por isso escolhi sugerir que existe uma diferença entre a justiça pública e a justiça interior. Existe uma diferença entre não ser condenado num tribunal e não ser capaz de escapar da prisão imposta pela sua própria mente. Me identifiquei profundamente com a personagem, senti compaixão por Ripley. E também porque não concordo com o ponto de vista da ficção que simplesmente transmite ao público que o mundo é dividido entre os bons e os maus. Porque não somos maus e porque assim, quando as pessoas se portam mal, isso não tem nada a ver conosco e não há nada a ser aprendido. E para mim, há um mundo de coisas a ser aprendido nesta história sobre Ripley e sobre todos nós. Eu quis mostrar aquilo que é humano, familiar e reconhecível. Na verdade, não sou tão analítico quando escrevo. Tento habitar a personagem e sentir seus sentimentos.

Comunità - Você se vê primeiramente como escritor ou como diretor?

Minghella - Eu não me vejo nem como um nem como outro (risos). Antigamente, eu costumava responder que era sobretudo um escritor, mas hoje penso que tenha encontrado uma coisa que realmente gosto de fazer na vida, isto é, fazer filmes como escritor e roteirista. É uma coisa maravilhosa porque em tantos anos na Universidade eu gostava de trabalhar sozinho. Mas então descobri que coisa divertida é trabalhar com um grupo, é uma família trabalhando e lutando para conquistar alguma coisa junta. Depois, na sala de edição, é tudo calmo, são poucas pessoas. Depois escrever e estou novamente sozinho. Então volto a filmar e é outra aventura barulhenta. Posso fazer a música, posso desenhar e trabalhar com esse grupo de pessoas maravilhosas que trabalham comigo. É uma coisa fantástica. Enquanto me deixarem fazer isso, farei.

Comunità - Seus filmes são todos muito belos. Todos os takes são grandiosos, a guerra é grandiosa, as cenas de amor são belas, grandiosas. Até os assassinatos, em Ripley, são grandiosos. Essa é a sua maneira de seduzir o público?

Minghella - Quando estou filmando não me preocupo muito com os resultados. Não ajuda pensar todos os dias como o público receberá este ou aquele take. O trabalho da câmera em Ripley é dizer como ela vê o mundo. Não existe nenhum momento no filme no qual ele não apreça. O público entende cada pequena informação em cada take. Por exemplo, quando eu estava filmando o Paciente Inglês, sobrevoei o Saara e notei que a areia, vista de cima, tinha a aparência de vários corpos deitados um do lado do outro. Então quando fui filmar a cena de abertura, escrevi no roteiro "o deserto lembra corpos deitados" e arrisquei. Não existe nenhuma legenda no filme mas, em qualquer dos lugares que fui, as pessoas me diziam: "no início do filme, a areia parece corpos deitados um do lado do outro". Se o cineasta tem um objetivo numa cena, o público entende. Cada take, para mim, é o mais importante no momento que o estou filmando. Tento colocar em cada um o máximo de informações sobre o filme. Não existe nenhum momento casual em Ripley e talvez tenha sido isso que foi notado.

Comunità - Qual é o seu próximo projeto?

Minghella - Eu tinha prometido a mim mesmo não fazer nenhuma outra adaptação. Não quero ficar sendo conhecido como um adaptador. Mas então li este livro incrível, "Cold Mountain", que é tão bom e eu sou tão guloso que farei a minha terceira adaptação numa sequência.

Comunità - É verdade que você tem um projeto com Walter Salles? Como vai participar? Como roteirista?

Minghella - É um projeto da minha mulher. Ela fará a produção. Talvez o Paul (Paul Zaentz, co-produtor do Talentoso Ripley) também participe. Mas é um projeto deles, um projeto maravilhoso. Gostei muito de conhecer o Walter Salles. Ele é um grande cineasta, mas eu sou um amigo do projeto. Ajudarei como for possível. Se precisar de alguém para dirigir a unidade aérea, eu dirijo. Se precisar de alguém para fazer sorvete, eu faço. Mas é um projeto ainda muito embrionário. Não é bom falar sobre futuro, o futuro desaparece.